Capítulo Cinco (Ultimo Sacrifício - Academia de Vampiros)

Capítulo Cinco



Me livrar de Dimitri não tinha a ver apenas com nosso passado romântico conturbado. Era sério quando falei que não queria que ele se encrencasse por minha causa. Se os guardiões me encontrassem, meu destino não seria muito diferente do que o que eu já vinha enfrentando. Mas Dimitri? Ele estava começando a engatinhar rumo à aceitação. Com certeza, isso já estava arruinado agora, porém, suas chances de ter uma vida não haviam acabado. Se ele não quisesse viver na Corte nem com os humanos, podia voltar para a Sibéria e para sua família. Lá longe, no meio do nada, seria difícil encontrá-lo. E do jeito que aquela comunidade era unida, todos fariam de tudo para escondê-lo, se alguém um dia tentasse persegui-lo. Ficar comigo era definitivamente a escolha errada. Eu só precisava convencê-lo disso.
— Sei o que você está pensando — disse Dimitri, após mais ou menos uma hora de termos pegado a estrada.
Não tínhamos conversado muito. Estávamos perdidos nos nossos próprios pensamentos. Depois de passar por mais algumas estradas do interior, por fim, chegamos a uma interestadual e seguíamos bem em direção a... Bem, eu não fazia a menor ideia. Vinha olhando pela janela, refletindo sobre todos os problemas a minha volta e tentando achar um meio de resolvê-los sozinha.
— Hã? — Olhei para ele.
Pensei ter visto o mais discreto esboço de um sorriso no seu rosto, o que parecia absurdo, levando-se em conta que aquela devia ser a pior situação em que ele se encontrava desde que deixou de ser Strigoi.
— E não vai dar certo — acrescentou ele. — Você está planejando como se livrar de mim, provavelmente quando pararmos para abastecer o carro. Está pensando que talvez tenha uma chance de fugir nesse momento.
A loucura é que eu estava mesmo pensando muito em algo nessa linha. O velho Dimitri era um bom companheiro na estrada, mas eu não sabia bem se gostava daquela sua capacidade de adivinhar meus pensamentos.
— Isso tudo é uma perda de tempo — disse eu, fazendo um gesto que abrangia o carro e tudo que estava a seu redor.
— Ah, é? Você tem alguma coisa melhor para fazer do que fugir de quem quer mantê-la trancada e executá-la? Por favor, não me diga de novo que isso é perigoso demais para mim.
Fiz uma cara de brava para ele.
— Não tem a ver só com você. Fugir não deveria ser minha única preocupação. Eu deveria estar ajudando a limpar meu nome e não me escondendo em qualquer que seja o lugar remoto para onde você, sem dúvida, está me levando. As respostas estão na Corte.
— E você tem vários amigos na Corte que irão trabalhar nisso. Vai ser mais fácil para eles se souberem que você está a salvo.
— O que quero saber é por que ninguém me contou nada disso... Ou melhor, por que Lissa não me contou. Por que ela escondeu isso de mim? Você não acha que eu teria ajudado mais se estivesse preparada?
— Nós é que lutamos, e não você — disse Dimitri. — Tínhamos receio de que, se você soubesse, talvez entregasse que estávamos armando alguma coisa.
— Eu jamais teria contado!
— Não de propósito. Isso não. Mas se você estivesse tensa ou ansiosa... Bem, seus guardas seriam capazes de perceber esse tipo de coisa.
— Bom, agora que saímos de lá, você pode me dizer para onde estamos indo? Eu estava certa? É para algum lugar absurdo e remoto?
Não houve resposta. Estreitei os olhos para ele.
— Detesto não fazer parte do grupo que toma as decisões.
Aquele sorriso minúsculo nos seus lábios aumentou um pouco.
— Bem, tenho uma teoria de que, quanto mais você não souber, mais sua curiosidade vai garantir que você permaneça comigo.
— Isso é ridículo — respondi, apesar de, na verdade, aquela teoria não ser tão insensata assim. Suspirei. — Quando foi que as coisas se descontrolaram tanto? Quando vocês passaram a ser os cabeças? Sou eu quem aparece com os planos loucos e impossíveis. Eu devia ser a general aqui. Agora, mal passo de uma tenente.
Ele começou a dizer alguma coisa, mas, então, paralisou por alguns segundos. No mesmo instante, aquele olhar de guardião atento e letal surgiu no seu rosto. Ele xingou em russo.
— O que foi? — perguntei.
Sua postura enérgica me fez esquecer todos os pensamentos sobre planos loucos. Com o brilho inconstante dos faróis vindos dos carros que seguiam pela pista oposta, pude ver seus olhos mirarem depressa o retrovisor.
— Estão nos seguindo. Não pensei que isso fosse acontecer tão cedo.
— Você tem certeza?
Tinha escurecido e o número de carros na estrada havia aumentado. Eu não sabia como alguém poderia avistar um carro suspeito em meio a tantos, mas, bem... era Dimitri. Ele xingou mais uma vez e, de repente, numa manobra que fez com que eu me agarrasse ao painel, cortou duas vias bruscamente, desviando por pouco de uma minivan cujo motorista expressou sua indignação metendo a mão na buzina. Havia uma saída bem ali, e ele mal conseguiu pegá-la sem bater no parapeito da rampa. Ouvi mais buzinas e, quando olhei para trás, vi os faróis de um carro que tinha feito uma manobra tão louca quanto a nossa para nos seguir por aquela saída.
— As notícias devem ter se espalhado pela Corte bem depressa — disse ele. — Já puseram alguém para vigiar as interestaduais.
— Talvez tivesse sido melhor passar pelas estradas da zona rural.
Ele balançou a cabeça.
— São muito lentas. Não teríamos problemas depois que trocássemos de carro, mas nos acharam cedo demais. Vamos ter que arranjar outro aqui. Esta é a maior cidade por onde vamos passar antes da fronteira com Maryland.
Uma placa informava que estávamos em Harrisburg, na Pensilvânia, e, enquanto Dimitri nos conduzia com habilidade por uma rua tumultuada, repleta de comércio, eu via o outro carro imitando tudo o que fazíamos.
— Como é que você planeja arranjar outro carro? — perguntei, com cuidado.
— Escute com atenção — disse ele, ignorando minha pergunta. — É muito, muito importante que você faça exatamente o que eu disser. Nada de improviso. Nada de discussão. Há guardiões naquele carro e, a esta altura, já avisaram todos os outros guardiões por aqui. Talvez até a polícia dos humanos.
— Se a polícia nos pegar, isso não geraria alguns problemas?
— Os alquimistas dariam um jeito nisso e cuidariam para que acabássemos nas mãos dos Moroi.
Os alquimistas. Eu já devia saber que eles seriam envolvidos.
Eram uma sociedade secreta de humanos que ajudava a proteger os interesses dos Moroi e dos dampiros, nos mantendo fora do fluxo principal dos humanos. É claro que os alquimistas não faziam isso por gentileza. Achavam que éramos malvados e anormais, e grande parte deles queria cuidar para que permanecêssemos às margens de sua sociedade. Uma “criminosa” fugitiva como eu por certo seria um problema com os Moroi que eles iriam querer evitar. A voz de Dimitri era dura e autoritária, embora seus olhos não estivessem em mim. Estavam ocupados avaliando as margens da estrada.
— Não importa o que você acha das escolhas que todos andam fazendo por você, não importa o quanto você está infeliz com essa situação, você sabe... Eu sei que sabe... que nunca falhei com você quando nossas vidas estiveram em risco. Você confiou em mim no passado. Confie em mim agora.
Eu queria dizer a Dimitri que o que ele falou não era inteiramente verdade. Ele tinha falhado comigo. Ao ser levado pelos Strigoi, ao mostrar que não era perfeito, ele tinha falhado comigo destruindo a imagem divina que eu fazia dele. Mas e quanto a minha vida? Não, ele sempre me manteve a salvo. Nem mesmo como Strigoi conseguiu me convencer inteiramente de que seria capaz de me matar. Na noite em que a escola foi atacada e ele foi transformado, Dimitri também me disse para obedecer sem questionar. O que significava deixá-lo lutando contra os Strigoi, e foi o que eu fiz.
— Está bem — assenti, baixinho. — Vou fazer tudo o que você disser. Mas lembre-se de não falar comigo de forma autoritária. Não sou mais sua aluna. Agora, sou igual a você.
Ele tirou os olhos da estrada apenas por tempo suficiente para me lançar um olhar surpreso.
— Você sempre foi igual a mim, Roza.
O uso do carinhoso apelido russo me deixou abobada demais para responder, mas não importava. Instantes depois, ele já tinha voltado ao outro assunto:
— Olhe ali. Está vendo aquele letreiro de cinema?
Percorri a rua com os olhos. Havia tantos restaurantes e tantas lojas que seus letreiros formavam uma névoa luminosa na noite. Por fim, vi o tal letreiro a que ele se referia: CINEMA WESTLAND.
— Estou.
— É lá que vamos nos encontrar.
Iríamos nos separar? Eu queria seguir por caminhos diferentes, mas não daquele jeito. Diante do perigo, nos separarmos de repente me pareceu uma péssima ideia. No entanto, eu havia prometido não discutir e continuei ouvindo.
— Se eu não estiver lá em meia hora, ligue para este número e vá sem mim.
Dimitri me deu um pedacinho de papel que tirou do bolso. Havia um número de telefone rabiscado nele e não era nenhum que eu reconhecesse. Se eu não estiver lá em meia hora. As palavras eram tão chocantes que não consegui evitar um protesto dessa vez.
— O que você quer dizer com se não estiver... Ah!
Dimitri fez outra curva abrupta, e avançou um sinal vermelho, por pouco não batendo em vários carros. Mais buzinas vieram, porém a manobra havia sido repentina demais para que o outro carro nos seguisse. Vi nossos perseguidores passarem acelerados pela estrada principal, com as luzes de freio acesas, procurando por um lugar para virar. Dimitri tinha nos levado para o estacionamento de um shopping. O lugar estava repleto de carros e dei urna olhada no relógio para ter uma noção do horário dos humanos. Quase oito da noite. Era cedo no dia dos Moroi e hora de se divertir para os humanos. Dimitri dirigia, passando por algumas entradas para o shopping e, por fim, escolheu uma, estacionando numa vaga para deficientes. Saiu do carro de um salto e fiz o mesmo, tão rápida quanto ele.
— É aqui que nos separamos — disse ele, dando uma corridinha em direção a um conjunto de portas. — Seja rápida, mas não corra quando estiver lá dentro. Não chame a atenção. Misture-se. Dê algumas voltas e depois passe por qualquer saída que não seja esta. Saia perto de um grupo de humanos e vá para o cinema. — Entramos no shopping. — Vá!
Como se tivesse receio de eu não me mexer, ele me deu um empurrãozinho em direção à escada rolante e seguiu pelo andar principal. Havia uma parte de mim que queria apenas paralisar e permanecer ali, que estava perplexa diante da repentina confusão de pessoas, luzes e atividades. Logo deixei essa parte estarrecida de lado e comecei a subir pela escada rolante. Reações instintivas e reflexos rápidos faziam parte de meu treinamento. Eu os havia aprimorado na escola, nas viagens e com Dimitri.
Tudo o que me ensinaram sobre esquivar-se de alguém voltou a minha mente depressa. O que eu queria fazer mais do que qualquer outra coisa era olhar ao redor para ver se estavam me seguindo, mas isso, definitivamente, teria chamado a atenção. Só me restava imaginar que, na melhor das hipóteses, dispúnhamos de alguns minutos de vantagem com relação a nossos perseguidores. Eles precisariam fazer o retomo para chegar ao shopping e depois circular para encontrar nosso carro, isso se tivessem descoberto que havíamos entrado no shopping. Eu não achava que a presença dos Moroi em Harrisburg fosse expressiva o bastante para conseguirem convocar tantos guardiões de última hora. Os que haviam ali deviam ter que se separar. Alguns procurariam no shopping enquanto outros vigiariam as entradas. Aquele lugar tinha portas demais, e os guardiões não conseguiriam vigiar todas. Minha escolha de fuga seria pura sorte.
Andei o mais rápido que pude, costurando por entre casais, famílias com carrinhos de bebê e adolescentes dando risadinhas, grupo que despertou minha inveja. Suas vidas pareciam tão tranquilas se comparadas à minha... Também passei pelas lojas típicas de shoppings, registrando seus nomes, mas não muito mais que isso: Ann Taylor, Abercrombie Fitch, Forever 21... A minha frente, avistei o centro do shopping, de onde diversos corredores se ramificavam. Eu teria que fazer uma escolha em breve.
Ao me deparar com uma loja de acessórios, entrei disfarçadamente e fingi estar interessada nas tiaras. Ao fazer isso, olhei, discretamente, para trás, para a parte principal do shopping. Não vi nada de estranho. Ninguém tinha parado. Ninguém tinha me seguido até a loja. Ao lado da seção de tiaras, havia um cesto de peças em liquidação que de fato mereciam estar em liquidação. Uma das peças era um boné de beisebol “de menininha” rosa-shocking, que tinha uma estrela de strass com as cores do arco-íris na frente. Era horroroso.
Comprei o boné, agradecida pelos guardiões não terem me tomado o pouco dinheiro que eu possuía quando fui presa. Devem ter imaginado que não era o bastante para subornar alguém. Também comprei um prendedor de cabelo, sempre atenta à entrada da loja. Antes de sair, prendi o cabelo bem no alto e então pus o boné. Era meio tolo ter que apelar para disfarces, mas era fácil me identificar pelo cabelo. Ele era de um castanho intenso, quase preto, e batia no meio das costas, já que não era cortado havia um bom tempo. Na verdade, com isso e a altura de Dimitri, seríamos uma dupla muito chamativa andando por ali.
Tornei a me misturar com os outros compradores e logo cheguei ao centro do shopping. Sem querer demonstrar qualquer hesitação, virei à esquerda em direção a Macy’s. Enquanto caminhava, fiquei um pouco envergonhada por causa do boné e lamentei por não ter tido tempo de arranjar um mais estiloso. Minutos depois, quando avistei um guardião, fiquei satisfeita por ter escolhido um adereço tão depressa.
Ele estava perto de um desses estandes que sempre vemos no centro dos shoppings, fingindo se interessar por capas para celulares. Eu o reconheci, em primeiro lugar, por causa de seu porte e do jeito como conseguia fingir interesse por uma capa para celular com estampa de zebra e, ao mesmo tempo, ficar procurando algo a seu redor. Além do mais, os dampiros sempre se distinguiam dos humanos, se fossem examinados de perto o bastante. Em grande parte, nossas duas raças pareciam quase idênticas, mas eu era capaz de reconhecer um dos meus.
Tratei de não olhar diretamente para ele e senti seus olhos passarem por mim. Eu não o conhecia, o que significava que ele não devia me conhecer também. Era provável que estivesse se baseando em uma foto que havia visto uma vez e que esperasse que meu cabelo me entregasse com facilidade. Mantendo um ar casual, passei pelo guardião num ritmo descontraído, olhando para as vitrines, ficando de costas para ele, mas sem deixar transparecer que estava fugindo. Durante aquele tempo todo, meu coração batia acelerado no peito. Os guardiões podiam me matar assim que me vissem. Será que isso se aplicava também ao centro de um shopping? Eu não queria descobrir.
Quando me afastei do estande, acelerei o passo um pouco. A Macy’s devia ter uma saída própria e agora seria uma questão de sorte eu ter feito uma boa escolha ou não ao seguir por aquela direção. Entrei na loja, desci pela escada rolante e me dirigi à saída da porta principal – passando por uma bela coleção de boinas e chapéus de “diplomata”. Parei perto deles, não porque planejava comprar um chapéu melhor, mas porque isso me permitiu seguir um grupo de meninas que também estava saindo.
Deixamos a loja juntas e meus olhos logo se ajustaram à mudança de luz. Havia muita gente por ali, mas, de novo, não vi nada de ameaçador. As meninas pararam para bater papo, me dando uma oportunidade de me situar sem parecer completamente perdida. À minha direita, avistei a rua movimentada em que Dimitri e eu tínhamos entrado, e dali sabia como chegar ao cinema. Suspirei, aliviada, e atravessei o estacionamento, ainda olhando ao redor.
Quanto mais eu me afastava do shopping, menos movimentado ficava o estacionamento. Postes de iluminação impediam que o lugar estivesse um breu, mas ainda assim havia algo de sinistro no ar, com tudo se tomando cada vez mais quieto. Meu primeiro impulso foi seguir pela direita até aquela rua e pegar a calçada que levava diretamente ao cinema. Ela era bem-iluminada e havia pessoas ali. Um instante depois, porém, concluí que isso era óbvio demais. Tinha quase certeza de que conseguiria atravessar as vagas muito mais depressa para chegar ao cinema.
E era isso mesmo – mais ou menos. Eu já avistava o cinema quando percebi que, no fim das contas, havia sido seguida. Não muito à minha frente, a sombra de um poste de luz não se projetava corretamente. Estava larga demais. Havia alguém atrás do poste. Eu duvidava que algum guardião tivesse escolhido aquele lugar intencionalmente, na esperança de que Dimitri ou eu aparecesse. O mais provável é que fosse um guarda que tivesse me visto e passado à frente para armar uma emboscada.
Continuei andando, tentando não desacelerar de um jeito óbvio, embora cada músculo do meu corpo se preparasse para atacar. Eu teria que ser a primeira a atacar. Teria que estar no controle.
Minha vez chegou segundos antes de eu desconfiar de que meu oponente tinha se mexido. Dei um pulo, jogando-o – no fim das contas, era um dampiro que não reconheci – num carro parado ali perto. Peguei o cara de surpresa. É claro que a surpresa foi mútua quando o alarme do carro disparou, fazendo um ruído estridente que se espalhava noite adentro. Estremeci, tentando ignorar o barulho enquanto atingia meu prisioneiro no lado esquerdo da mandíbula. Precisava aproveitar ao máximo o fato de tê-lo dominado. A força de meu punho fez sua cabeça bater contra o carro, mas ele reagiu de modo admirável, empurrando-me de volta no mesmo instante, tentando se libertar. Ele era mais forte e eu cambaleei um pouco, só que não o bastante para perder o equilíbrio. Eu compensava a força que não tinha com velocidade. Consegui me esquivar de cada tentativa dele, mas isso me deixou pouco satisfeita. Aquele alarme idiota ainda soava alto e acabaria chamando a atenção de outros guardiões ou de autoridades humanas.
Contornei correndo pela lateral do carro e ele me seguiu, parando quando nos encontrávamos em lados opostos. Estávamos como duas crianças brincando de pique. Imitávamos um ao outro enquanto ele tentava prever em que direção eu iria. Sob a luz fraca, vi algo surpreendente enfiado no seu cinto: uma arma de fogo. Meu sangue gelou. Os guardiões eram treinados para usar armas de fogo, mas raramente andavam com uma. A estaca era a arma que escolhíamos. Nos dedicávamos a matar Strigoi, afinal, e armas de fogo não adiantavam. Mas contra mim... É claro, uma arma de fogo simplificava o trabalho dele, só que eu tinha a sensação de que ele hesitaria em usá-la. O alarme poderia ter sido disparado por alguém que acidentalmente chegou perto demais do carro, já um tiro... Isso faria com que chamassem a polícia. Aquele cara não iria atirar, se pudesse evitar, mas iria, se não tivesse escolha. Aquilo precisava acabar logo.
Por fim, me mexi em direção à frente do carro. Ele tentou me interceptar, mas eu o surpreendi ao subir no capô depressa (porque, sinceramente, não teria como o alarme ficar mais alto). Na fração de segundo que eu tinha de vantagem, pulei do carro em cima dele, derrubando-o de vez no chão. Caí sobre seu estômago e o segurei, com a ajuda de todo meu peso, e com as mãos agarrei seu pescoço. Ele resistiu, tentando me empurrar para longe e quase conseguiu. Finalmente, a falta de ar venceu. Ele parou de se mexer e ficou inconsciente. Soltei-o.
Por um breve instante, me lembrei da nossa figa da Corte, quando usei a mesma técnica em Meredith. Eu a vi deitada no chão outra vez e senti novamente uma onda de culpa. Depois, deixei isso para lá. Meredith estava bem. Meredith sequer estava ali. Nada disso importava. O que importava agora era que aquele cara estava incapacitado e eu precisava sair dali. Imediatamente.
Sem me virar para ver se outros vinham, saí apressada do estacionamento em direção ao cinema. Parei quando já existia uma certa distância entre mim e o carro barulhento, me escondendo atrás de outro carro. Ainda não via ninguém se aproximar do cara, mas, lá na frente do estacionamento, perto da entrada, parecia acontecer alguma coisa. Não fiquei ali para ver melhor. Seja lá o que fosse, não podia ser bom para mim.
Cheguei no cinema poucos minutos depois, ofegante, mais por medo do que por exaustão. Eu tinha muita resistência para correr, graças a Dimitri. Mas onde estava Dimitri? Os frequentadores do cinema se misturavam, alguns olhando de cara feia para o meu estado desgrenhado enquanto esperavam para comprar ingressos ou conversavam sobre o filme a que tinham acabado de assistir. Não vi sinal de Dimitri em lugar nenhum.
Eu não tinha relógio. Quanto tempo havia se passado desde que nos separamos? Por certo, menos de meia hora. Andei pelo cinema, me escondendo em meio à multidão, procurando qualquer indício de Dimitri ou de mais perseguidores. Nada.
Os minutos passavam. Inquieta, enfiei a mão no bolso e toquei no pedaço de papel com o telefone. , havia dito ele. Vá e ligue para esse número. É claro que eu não tinha um celular, mas aquele era o menor dos meus problemas agora...
— Rose!
Um carro encostou no meio-fio, onde outros veículos deixavam as pessoas. Dimitri se inclinava pela janela do motorista e quase caí no chão de tanto alívio. Bom, está bem, quase, não. Na verdade, não perdi tempo. Corri até ele e me joguei no banco do carona. Sem dar uma palavra, ele pisou no acelerador, nos levando para longe do cinema e de volta à via principal.
Num primeiro momento, não dissemos nada. Ele estava tão tenso e no limite que dava a impressão de que a menor das provocações o partiria em dois. Ele dirigiu o mais rápido que pôde sem chamar a atenção da polícia, olhando pelo retrovisor o tempo todo.
— Tem alguém atrás de nós? — perguntei, por fim, quando ele voltou para a rodovia.
— Parece que não. Vão demorar um pouco para descobrir em que carro estamos.
Eu não tinha prestado muita atenção ao entrar, mas estávamos num Honda Accord – outro carro de aparência comum. Também notei que não havia chave na ignição.
— Você fez ligação direta neste carro? — E, em seguida, reformulei a pergunta: — Você roubou este carro?
— Você tem valores interessantes — observou ele. — Fugir da prisão, tudo bem. Mas é só roubar um carro que você parece completamente indignada.
— Estou mais surpresa do que indignada — retruquei, recostando-me no banco. Suspirei. — Tive medo... Bem, por um momento, ali, tive medo de você não aparecer. De você ter sido pego ou coisa do tipo.
— Não. Passei a maior parte do tempo às escondidas procurando um carro apropriado.
Houve alguns minutos de silêncio.
— Você não perguntou o que aconteceu comigo — comentei, um pouco chateada.
— Não preciso fazer isso. Você está aqui. É o que importa.
— Tive que lutar.
— Dá para notar. Sua manga está rasgada.
Olhei para baixo. É, rasgada. Eu também havia perdido o boné na minha fuga enlouquecida. Não foi uma grande perda.
— Você não quer saber nada sobre a luta?
Seus olhos permaneceram na estrada a nossa frente.
— Já sei. Você derrotou seu inimigo. Fez isso depressa e fez isso muito bem. Porque você é boa a esse ponto.
Refleti sobre aquelas palavras por um momento. Eram impassíveis, protocolares apenas... e, ainda assim, sua declaração trouxe um pequeno sorriso a meus lábios.
— Está bem. E agora, general? Você não acha que podem examinar os boletins de carros roubados e pegar o número da nossa placa?
— É provável. Mas até lá, já teremos outro carro... Um carro de que não terão a menor pista.
Franzi a testa.
— Como é que você vai conseguir isso?
— Vamos nos encontrar com alguém daqui a algumas horas.
— Merda. Eu realmente odeio ser a última a saber de tudo.
“Algumas horas” nos levaram a Roanoke, na Virgínia. A maior parte da nossa viagem havia se passado sem grandes acontecimentos até aquele ponto. No entanto, quando avistamos a cidade, notei Dimitri observando as placas de saída até encontrar a que queria. Saindo da interestadual, ele continuou procurando perseguidores, mas não encontrou nenhum. Chegamos a outra rua repleta de comércio, e ele dirigiu até um McDonald's, que se destacava claramente dos outros estabelecimentos.
— Imagino — comentei — que esta não seja uma parada para o lanche.
— Aqui — respondeu ele — é onde pegamos nosso próximo carro.
Ele dirigiu pelo estacionamento do restaurante, procurando alguma coisa com os olhos, embora, no início, eu não soubesse o quê. Avistei aquilo uma fração de segundo antes dele. No canto mais distante do estacionamento, vi uma mulher debruçada sobre um utilitário marrom-claro, de costas para nós. Não dava para ver muito dela, a não ser que usava uma blusa escura e que tinha um cabelo louro despenteado quase na altura dos ombros.
Dimitri parou na vaga ao lado do veículo dela e saí do nosso no instante em que ele pisou no freio. Eu a reconheci antes mesmo de ela se virar.
— Sydney?
O nome saiu como uma pergunta, embora eu estivesse certa de que fosse ela. Ela virou a cabeça e vi um rosto conhecido – o rosto de uma humana – com olhos castanhos que, ao sol, podiam ficar cor de âmbar, e uma discreta tatuagem dourada na bochecha.
— Ei, Rose — disse Sydney, com um sorriso pesaroso nos lábios. Ela segurava um saco de papel do McDonald's. — Imaginei que você estivesse com fome.

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