Capítulo Seis (Ultimo Sacrifício - Academia de Vampiros)



Capítulo Seis


Realmente, pensando bem, o fato de Sydney ter aparecido não é muito mais estranho do que metade das outras coisas que costumavam acontecer comigo. Sydney era uma alquimista que conheci na Rússia enquanto tentava encontrar e matar Dimitri. Ela era da minha idade e odiou ser mandada para lá, apesar de eu ter apreciado muito sua ajuda. Como Dimitri havia comentado mais cedo, os alquimistas iriam querer ajudar os Moroi a me encontrar e a me capturar. No entanto, julgando pela tensão que emanava tanto dele quanto de Sydney no carro, era óbvio que ela estava colaborando com aquela fuga. Com um grande esforço, deixei meus questionamentos de lado naquele momento.
Ainda éramos fugitivos. Ainda estávamos, sem dúvida, sendo perseguidos. O carro de Sydney era um Honda CR-V novinho com placa da Louisiana e um adesivo indicando que o veículo era alugado.
— O quê? — perguntei. — Essa fuga audaciosa está sendo patrocinada pela Honda? — Como não me responderam, passei para a pergunta seguinte mais óbvia: — Estamos indo para Nova Orleans?
Era onde Sydney trabalhava agora. Um passeio turístico era a última coisa que eu tinha em mente naquele momento, mas, já que precisava fugir, podia muito bem ser para algum lugar legal.
— Não — respondeu ela, dando ré para sair da vaga. — Vamos para a Virgínia Ocidental.
Lancei um olhar penetrante para Dimitri, que estava no banco de trás, na esperança de que ele negasse aquilo. Ele não negou.
— Imagino que com “Virgínia Ocidental” você queira dizer “Havaí” — concluí. — Ou algum lugar tão empolgante quanto.
— Para ser sincera, acho melhor você evitar empolgação por enquanto — comentou Sydney. O GPS do carro a direcionou para a virada seguinte, nos levando de volta para a 1-81. Ela franziu um pouco a testa. — E, na verdade, a Virgínia Ocidental é muito bonita.
Me lembrei de que Sydney era de Utah e não devia conhecer quase nada. Como fazia muito tempo que eu já havia desistido de ter qualquer controle sobre o roteiro dessa fuga, fiz mais uma rodada de perguntas óbvias.
— Por que você está nos ajudando?
Tive a impressão de que ela fazia uma careta no escuro.
— Por que você acha que estou?
— Abe.
Sydney suspirou.
— Estou realmente começando a me perguntar se Nova Orleans valeu a pena.
Descobri recentemente que Abe – com aquela sua vasta influência inexplicável – tinha sido o responsável por tirá-la da Rússia. Como ele fez isso, não sei. O que eu sabia era que isso deixou Sydney com uma dívida em aberto, uma dívida que ele vivia usando para obter favores. Às vezes, eu me perguntava se o acordo envolvia mais do que uma transferência no trabalho, como se ele tivesse feito outra coisa que nenhum dos dois me contou. De todo jeito, comecei a criticá-la de novo, dizendo que já deveria esperar por isso, pois fez um pacto com o diabo, mas logo reconsiderei. Com um punhado de guardiões na minha cola, não seria inteligente da minha parte provocar alguém que me ajudava. Fiz uma pergunta diferente:
— Está bem. Então, por que vamos para a Virgínia Ocidental?
Sydney abriu a boca para responder, mas Dimitri a interrompeu:
— Ainda não.
Me virei de novo e olhei para ele, enfurecida.
— Estou tão cansada disso! Estamos fugindo há seis horas e ainda não conheço todos os detalhes. Sei que estamos nos mantendo longe dos guardiões, mas vamos mesmo para a Virgínia Ocidental? Vamos usar uma cabana como base de operação? Daquelas nos pés de uma montanha, sem encanamento?
Sydney deu um de seus típicos suspiros exasperados.
— Você sabe mesmo alguma coisa sobre a Virgínia Ocidental?
Eu não estava satisfeita em saber que Dimitri e ela se uniram para me manter na escuridão. É claro que, em se tratando de Sydney, sua reticência poderia vir de inúmeras coisas. Ainda poderiam ser as ordens de Abe. Ou talvez ela só não quisesse conversar comigo. Como grande parte dos alquimistas considerava os dampiros e vampiros a desova do inferno, eles não costumavam ser muito amigáveis conosco. O tempo que passou comigo na Sibéria mudou um pouco seu ponto de vista. Era o que eu esperava. Às vezes eu sentia que ela continuava a mesma.
— Você sabe que armaram para a gente, não é? — perguntei a ela. — Na verdade, não fizemos nada. Dizem que matei a rainha, mas...
— Eu sei — interrompeu Sydney. — Já ouvi essa história. Todos os alquimistas estão sabendo. Vocês dois estão no topo da nossa lista de procurados.
Ela tentou manter um tom formal, mas não conseguiu esconder seu desassossego. Eu sentia que Dimitri a deixava mais nervosa do que eu, o que era compreensível, já que ele deixava alguns da nossa própria raça nervosos também.
— Não faria uma coisa dessas — insisti.
De algum jeito, era importante que ela soubesse.
Sydney não ligou para meu comentário. Em vez disso, falou:
— Você devia comer. Seu lanche está esfriando. Ainda faltam mais de três horas de viagem e não vamos parar, a não ser para abastecer.
Na sua fala havia um propósito, uma lógica. Ela não queria conversar mais. Dentro do saco, encontrei duas porções gigantes de batata frita e três cheeseburgers. Ao que parecia, ela ainda me conhecia muito bem. Precisei de muito autocontrole para não encher a boca de batata frita no mesmo instante. Em vez disso, ofereci um cheeseburger a Dimitri.
— Você quer um? Tem que se manter forte.
Ele hesitou por vários segundos antes de aceitar. Parecia olhar para o sanduíche com algum tipo de admiração, e me dei conta de que comer ainda era algo novo para ele, depois dos últimos meses. Os Strigoi subsistiam apenas de sangue. Passei um pouco de batata frita para ele também, e então me virei para devorar o resto. Não me dei ao trabalho de oferecer a Sydney. Ela era conhecida por sua falta de apetite e, além do mais, imaginei que já tivesse comido, se quisesse, enquanto esperava por nós.
— Acho que isto é para você — disse Dimitri, me entregando uma pequena mochila.
Ao abri-la, encontrei algumas mudas de roupa e uns itens básicos de toalete. Dei mais uma olhada nos trajes.
— Shorts, blusas e um vestido. Não dá para lutar com isso. Preciso de jeans. — O vestido era bonito, eu admito: um vestido de verão longo, feito de um tecido fino com uma estampa de aquarela em tons de preto, branco e cinza. Mas nada prático.
— De nada — disse Sydney. — Tudo aconteceu meio rápido. Foi o que consegui juntar.
Dei uma olhada para trás e vi Dimitri desfazendo a mochila dele. Nela havia roupas básicas, como na minha, e também...
— Um sobretudo? — perguntei ao vê-lo tirar o longo casaco de couro da mochila. Como o casaco coube ali era um desafio à física. — Você conseguiu um sobretudo para ele, mas não conseguiu um jeans para mim?
Sydney parecia não se preocupar com minha indignação.
— Abe disse que era o básico. Além do mais, se tudo correr como deve, você não irá lutar.
Não gostei do que ouvi. A salvo e isolada.
Como eu tinha os que deviam ser os companheiros de viagem mais quietos do mundo, sabia que não devia esperar nenhuma conversa profunda pelas três horas seguintes. Acho que foi bom, porque isso me permitiu dar uma olhada em Lissa. Eu ainda estava nervosa demais com minha fuga para passar muito tempo na cabeça dela, então, fiz apenas uma rápida avaliação do que estava acontecendo na Corte.
Exatamente como Dimitri havia previsto, os guardiões tinham restabelecido a ordem rapidamente. A Corte estava sob confinamento, e aqueles que tinham qualquer tipo de ligação comigo eram interrogados de maneira exaustiva. Acontece que todos eles tinham álibis. Todo mundo viu meus aliados no velório – ou, no caso de Abe, pensou ter visto. Algumas meninas juraram que estiveram com Adrian, o que eu só podia supor que era o resultado de mais compulsão. Dava para sentir a satisfação de Lissa através do laço à medida que a frustração dos guardiões aumentava.
Embora ela não fizesse a menor ideia de quando eu poderia checar sua mente, mandou-me um recado pelo laço: Não se preocupe, Rose. Vou cuidar de tudo. Vamos limpar seu nome.
Me recostei de novo no banco do carro, sem saber ao certo como me sentir naquela situação. Passei a vida inteira cuidando dela. Eu a protegia do perigo e me esforçava muito para mantê-la longe de qualquer ameaça. Agora, os papéis tinham se invertido. Ela me ajudou a salvar Dimitri e eu me via nas suas mãos – e, ao que parecia, nas de todos os outros – no que dizia respeito àquela fuga.
Isso contrariava cada instinto meu e me perturbava. Eu não estava acostumada a ser protegida pelos outros, muito menos por ela.
Os interrogatórios ainda aconteciam, e a vez de Lissa não tinha chegado, mas algo me dizia que meus amigos escapariam dessa. Não seriam punidos por minha fuga e, então, eu seria de fato a única que corria perigo – como preferia que fosse.


A Virgínia Ocidental pode ser tão bonita quanto Sydney havia afirmado, mas, na verdade, eu não saberia dizer, pois já estava no meio da noite quando chegamos. Em grande parte do trajeto, tive a sensação de cruzarmos as montanhas, sentindo as subidas e descidas enquanto atravessávamos trechos em zigue-zague e túneis. Depois de quase três horas, entramos numa cidadezinha que era um buraco, com apenas um semáforo e um restaurante, cujo letreiro dizia simplesmente RESTAURANTE. No entanto, não havia movimento algum na estrada fazia uma hora, o que era de fato o mais importante. Não tínhamos sido seguidos.
Sydney nos levou para um prédio com uma placa que dizia HOTEL. Ao que parecia, aquela cidadezinha gostava de se manter no básico quando o assunto era nomes. Eu não me surpreenderia se, na verdade, ela fosse chamada apenas de CIDADEZINHA. Enquanto caminhávamos pelo estacionamento do hotel, me espantei ao perceber como minhas pernas estavam doloridas. Cada parte do meu corpo doía, e dormir seria fantástico. Já fazia mais de 12 horas que aquela aventura tinha começado.
Sydney fez nosso check-in com nomes falsos e o recepcionista sonolento não perguntou nada. Passamos por um corredor que não era exatamente sujo, mas também não era nada de que um membro da realeza chegaria perto. Um carrinho de limpeza estava encostado numa parede como se alguém tivesse desistido de usá-lo e o abandonado ali. Sydney parou de repente diante de um quarto e nos entregou uma chave. Me dei conta, então, de que ela se dirigia a outro cômodo.
— Não vamos ficar todos juntos? — perguntei.
— Ei, se vocês forem pegos, não quero estar nem perto — disse ela, sorrindo. Tive a sensação de que ela também não queria dormir no mesmo quarto que as “criaturas malignas da noite”. — Mas ainda vou estar por aqui. Conversamos pela manhã.
Aquilo me fez perceber mais uma coisa.
Olhei para Dimitri.
— Nós dois vamos ficar no mesmo quarto?
Sydney deu de ombros.
— É melhor para vocês se defenderem.
Ela nos deixou daquele seu jeito abrupto, e Dimitri e eu olhamos um para o outro por um instante antes de seguirmos até lá. Como o resto do hotel, o cômodo não era elegante, mas servia. O tapete estava gasto, mas intacto, e apreciei a parca tentativa de decoração representada por um quadro muito ruim de algumas peras. Havia uma pequena e triste janela. E uma cama.
Dimitri fechou o trinco e a corrente da porta e então se sentou na única cadeira do quarto. Ela era feita de madeira com o encosto reto, mas ele parecia considerá-la a coisa mais confortável do mundo. Dimitri ainda mantinha aquele eterno olhar vigilante, mas, apesar de tudo, dava para perceber que estava exausto. Aquela havia sido uma noite longa para ele também.
Me sentei à beira da cama.
— E agora?
— Agora esperamos — respondeu ele.
— O quê?
— Que Lissa e os outros limpem seu nome e descubram quem matou a rainha.
Esperei por mais explicações, mas tudo o que consegui foi silêncio. Uma descrença começou a crescer em mim. Eu tinha sido o mais paciente que podia naquela noite, presumindo que Dimitri estava me levando numa missão misteriosa para ajudar a solucionar o assassinato. Quando ele falou que iríamos esperar, por certo não quis dizer que iríamos apenas... Bem, esperar, não é?
— O que nós vamos fazer? — perguntei, exigindo uma resposta. — Como vamos ajudá-los?
— Já lhe dissemos mais cedo: você não tem como sair procurando por pistas na Corte. Precisa ficar longe de lá. Precisa permanecer a salvo.
Fiquei de queixo caído, gesticulando por aquele cômodo sem graça.
— O quê? Então é isso? Você vai me manter aqui, como num depósito? Pensei... Pensei que houvesse alguma coisa aqui. Alguma coisa que pudesse ajudar.
— Isso está ajudando — disse ele, daquele seu jeito calmo e irritante. — Sydney e Abe pesquisaram este lugar e concluíram que é fora de mão o bastante para evitar ser detectado.
Me levantei da cama num pulo.
— Está bem, companheiro. Só que tem um problema sério com sua lógica. Vocês agem como se o fato de eu ficar fora do caminho fosse ajudar.
— Não entendo por que precisamos ter essa conversa toda hora. As respostas para “quem matou Tatiana?” estão na Corte e é onde seus amigos estão. Eles vão resolver isso.
— Não me envolvi numa perseguição em alta velocidade e atravessei estados para acabar enfurnada numa porcaria de hotel! Quanto tempo você planeja “ficar fora de mão” aqui?
Dimitri cruzou os braços sobre o peito.
— Pelo tempo que for preciso. Temos dinheiro para ficar aqui por tempo indeterminado.
— Eu devo ter bastante trocado no meu bolso para ficar aqui por tempo indeterminado! Mas isso não vai acontecer. Preciso fazer alguma coisa. Não vou simplesmente sair pelo caminho mais fácil e ficar à toa.
— Sobreviver não é tão fácil quanto você pensa.
— Ah, meu Deus — exclamei. — Você tem andado com Abe, não tem? Sabe, quando você era um Strigoi, me disse para ficar longe dele. Talvez devesse seguir o próprio conselho.
Me arrependi daquelas palavras tão logo elas saíram da minha boca, e vi nos olhos dele que eu havia feito um estrago sério. Ele podia vir agindo como o velho Dimitri naquela fuga, mas o tempo que passou como Strigoi ainda o atormentava.
— Me desculpe — principiei. — Eu não queria...
— Já chega de discutir isso — interrompeu ele com dureza. — Lissa disse para ficarmos aqui, então, vamos ficar aqui.
Uma raiva expulsou minha culpa, deixando-a de lado.
— É por esse motivo que você está fazendo isso? Por que Lissa lhe disse para fazer?
— Claro. Jurei que iria servi-la e ajudá-la.
Foi então que explodi. Já havia sido ruim o bastante, quando Lissa transformou Dimitri num dampiro de novo, ele ter pensado que não tinha problema andar com ela o tempo todo e me desprezar. Apesar de eu ter ido até a Sibéria e de eu ter descoberto que Robert, o irmão de Victor, sabia como recuperar um Strigoi... Bem, ao que parecia, essas coisas não importavam. Só o fato de Lissa ter empunhado a estaca importava. Agora Dimitri a via como algum tipo de deusa angelical e fez um voto arcaico de servi-la, como o de um cavaleiro.
— Pode esquecer — retruquei. — Não vou ficar aqui.
Dei três passos para chegar até a porta e consegui soltar a corrente, mas, segundos depois, Dimitri já havia levantado da cadeira e me jogado contra a parede. Na verdade, foi um tempo de reação muito lento. Eu esperava que ele me detivesse antes de dar dois passos.
— Você vai ficar aqui — disse ele, calmo, agarrando meus punhos. — Gostando ou não disso.
Agora eu tinha algumas opções. Eu poderia ficar, é claro. Eu poderia passar dias – talvez meses – naquele hotel, até Lissa limpar meu nome. Isso significava presumir que Lissa seria capaz de limpar meu nome e que eu não teria intoxicação alimentar com a comida do restaurante RESTAURANTE. Essa era a opção mais segura. E também a mais chata para mim.
Outra opção era lutar para passar por Dimitri. Isso não seria seguro nem fácil.
Também seria desafiador em especial porque eu teria que tentar lutar de um jeito que me permitisse escapar, mas que não o matasse nem provocasse ferimentos graves em nenhum de nós.
Ou eu poderia simplesmente deixar a cautela de lado e não maneirar. Ah, o cara lutou contra os Strigoi e metade dos guardiões da Corte. Era capaz de lidar comigo, mesmo eu dando tudo de mim. Está certo que já havíamos tido encontros um tanto brutos na época da São Vladimir. O melhor de mim seria o suficiente para escapar? Estava na hora de descobrir.
Dei uma joelhada no estômago de Dimitri, o que era óbvio que ele não esperava. Seus olhos se arregalaram, em estado de choque – e com um pouco de dor – me dando abertura para me libertar de suas mãos. Essa abertura durou apenas o bastante para que eu destrancasse a porta. Antes que eu alcançasse a maçaneta, Dimitri já me segurava de novo. Ele me agarrou com força e me jogou na cama de barriga para baixo, me prendendo com seu peso e impedindo que minhas pernas dessem mais algum chute surpresa. Esse sempre foi meu maior problema nas lutas: oponentes – normalmente homens – mais fortes e pesados.
Minha velocidade era meu melhor recurso em situações como aquela, mas o fato de estar presa por baixo me deixava sem opções de esquiva e evasão. Ainda assim, cada parte minha lutava, tornando difícil para ele me manter ali.
— Pare com isso — disse ele no meu ouvido, quase o tocando com os lábios. — Seja sensata pelo menos uma vez. Você não consegue passar por mim.
Senti aquele corpo quente e forte contra o meu e prometi me dar uma baita bronca mais tarde. Pare com isso, pensei. Concentre-se em sair daqui e não em senti-lo.
— Não sou eu que não estou sendo sensata — resmunguei, tentando virar meu rosto na direção de Dimitri. — É você quem está preso numa nobre promessa que não faz o menor sentido. E sei que você não gosta de ficar de fora da ação tanto quanto eu. Me ajude. Me ajude a descobrir quem é o assassino e fazer alguma coisa de útil.
Parei de resistir e fingi que nossa discussão tinha me distraído.
— Não gosto de ficar de fora, mas também não gosto de me precipitar e cair numa situação impossível!
— Situações impossíveis são nossa especialidade — argumentei.
Nesse meio tempo, tentei avaliar como Dimitri me segurava. Ele não havia relaxado as mãos, porém, eu esperava que a conversa o distraísse. Dimitri costumava ser bom demais para perder o foco. Mas eu sabia que ele estava cansado. E talvez, apenas talvez, ele estivesse um pouco descuidado, já que era eu e não um Strigoi.
Nada.
Reagi abruptamente, tentando me soltar e sair depressa de debaixo dele. O máximo que consegui fazer foi rolar o corpo até que ele me segurasse de novo, agora me deixando de costas para a cama. Estar tão perto dele... Seu rosto, seus lábios... o calor de sua pele na minha. Bem. Ao que parecia, tudo o que eu tinha conseguido era me pôr numa desvantagem ainda maior. Por certo, ele não se mostrava afetado pela proximidade dos nossos corpos. Exibia aquela sua típica determinação de aço e, embora fosse idiotice da minha parte, embora eu soubesse que não deveria me importar mais com o fato de ele estar em cima de mim... Bem, me importei, sim.
— Um dia — disse ele. — Você não pode esperar nem um dia?
— Talvez, se tivéssemos ido para um hotel melhor. Com TV a cabo.
— Não é hora para brincadeira, Rose.
— Então me deixe fazer alguma coisa. Qualquer coisa.
— Eu... não posso.
Pronunciar aquelas palavras obviamente doeu nele, e me dei conta de uma coisa: eu estava tão brava com Dimitri, tão furiosa por ele tentar me fazer ficar à toa e a salvo, mas ele também não gostava nada daquilo. Como eu podia ter esquecido o quanto éramos parecidos? Nós dois desejávamos ação. Nós dois queríamos ser úteis, ajudar aqueles com quem nos importávamos. Só sua resolução de ajudar Lissa o mantinha ali, naquele trabalho de babá. Dimitri alegava que voltar correndo para a Corte era imprudência, mas eu tinha a sensação de que se ele não fosse o responsável por mim – ou, bem, se não pensasse que era – também teria corrido de volta para lá no mesmo instante.
Então, o estudei, estudei seus olhos escuros determinados e sua expressão suavizada pelo cabelo castanho que tinha escapado do rabo de cavalo. O cabelo pendia em torno de seu rosto agora, quase encostando no meu. Eu poderia tentar me libertar de novo, mas perdi as esperanças de isso funcionar. Ele era feroz demais e estava determinado demais a me manter a salvo. Percebi que falar sobre minha suspeita de que ele também queria voltar para a Corte não ia adiantar. Verdade ou não, ele esperaria que eu argumentasse com a lógica da Rose. Era Dimitri, afinal. Ele esperaria por tudo.
Bem, quase tudo.
Uma ideia me veio à mente tão depressa que não parei para analisá-la. Simplesmente agi. Meu corpo podia estar preso, mas minha cabeça e meu pescoço estavam livres o bastante apenas para se erguerem – e beijá-lo.
Meus lábios encontraram os dele e descobri algumas coisas. Uma foi que era possível pegá-lo totalmente de surpresa. Seu corpo paralisou e travou, chocado diante da repentina reviravolta. Também me dei conta de que ele beijava tão bem quanto eu me lembrava. A última vez que tínhamos nos beijado havia sido quando ele era Strigoi.
Houve uma sensualidade estranha naquilo, mas não se comparava ao calor e à energia de estar vivo. Seus lábios eram exatamente como eu me lembrava da nossa época na São Vladimir, macios e ávidos ao mesmo tempo. Uma eletricidade se espalhou pelo resto do meu corpo enquanto ele me beijava. Era reconfortante e excitante ao mesmo tempo.
E essa foi a terceira coisa que descobri. Ele estava me beijando. Talvez, apenas talvez, Dimitri não fosse tão determinado quanto alegava ser. Talvez, sob toda aquela culpa e certeza de que não seria capaz de amar de novo, ele ainda me quisesse. Eu gostaria de ter descoberto. Mas não dava tempo.
Em vez de descobrir, bati nele.
É verdade: já bati em vários caras que estavam me beijando, só que nunca em um que eu realmente quisesse continuar beijando.
Dimitri ainda me segurava com firmeza, mas o choque do beijo havia baixado sua guarda.
Meu punho se libertou e se juntou à lateral de seu rosto. Sem esperar um segundo sequer, o empurrei com toda minha força, tirando-o de cima de mim, e me levantei da cama num pulo, indo em direção à porta.
Ouvi Dimitri ficar de pé enquanto eu a abria.
Saí em disparada do quarto e bati a porta antes que pudesse ver o que ele fez em seguida. Não que isso fosse preciso. Ele vinha atrás de mim.
Sem hesitar por um instante sequer, empurrei o carrinho de limpeza abandonado para a frente da porta do quarto e acelerei pelo corredor. Alguns segundos depois, a porta se abriu e ouvi um grito irritado – bem como uma palavra muito, muito feia em russo – quando ele tropeçou no carrinho.
Dimitri levaria apenas alguns segundos para jogá-lo para o lado, mas era tudo do que eu precisava. Num piscar de olhos, desci o lance de escadas e cheguei ao lobby precário onde um recepcionista entediado lia um livro. Ele quase pulou da cadeira quando passei, apressada.
— Tem um cara me perseguindo! — gritei, enquanto saía pela porta.
O recepcionista não parecia de jeito nenhum alguém que tentaria deter Dimitri, e eu tinha a sensação de que, de qualquer maneira, Dimitri não iria parar se o cara pedisse.
Na pior das hipóteses, o homem chamaria a polícia. Naquela cidadezinha, a POLÍCIA devia ser apenas um cara e um cachorro.
De todo jeito, isso não era mais da minha conta. Eu tinha fugido do hotel e agora estava no meio de uma cidadezinha montanhosa adormecida, nas suas ruas repletas de sombras. Dimitri poderia estar bem atrás de mim, mas, quando me enfiei numa mata perto dali, sabia que seria fácil me perder dele na escuridão.

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