Capítulo Quatro (Ultimo Sacrifício - Academia de Vampiros)

Capítulo Quatro

E quando digo que explodiram, quero dizer que explodiram.
Chamas e fumaça se espalharam como pétalas de uma flor recém-desabrochada, e aqueles pobres monarcas foram reduzidos a blocos de pedra. Por um momento, fiquei chocada. Era como assistir a um filme de ação, com a explosão tomando o ar e sacudindo o chão.
Então, o treinamento de guardiã veio à tona. Cálculos e observações críticas assumiram o comando. De imediato, notei que a parte principal do material das estátuas explodiu em direção ao outro lado do jardim. Pequenos pedaços de pedra e poeira caíram como chuva sobre a procissão, mas nenhum bloco grande de pedra atingiu Lissa ou qualquer um que estivesse ali perto. Presumindo-se que as estátuas não haviam entrado em combustão espontaneamente, quem quer que as tivesse explodido havia feito isso com precisão.
Deixando a logística de lado, enormes pilares de chamas e poeira ainda são muito assustadores. O caos emergiu quando todos tentavam escapar. Só que cada um ia para um lado. Portanto, aconteceram colisões e confusões. Até mesmo os carregadores do caixão depositaram seu precioso fardo no chão e correram. Ambrose foi o último a fazer isso, boquiaberto e com os olhos arregalados enquanto encarava Tatiana, mas, depois de dar outra olhada nas estátuas, se juntou à multidão. Alguns guardiões tentaram manter a ordem, reunindo as pessoas e fazendo-as voltar pelo caminho da procissão, só que não adiantou muito. Todos estavam fora si, em pânico e apavorados demais para serem razoáveis.
Bem, todos menos Lissa.
Para minha surpresa, ela não estava surpresa.
Já esperava pela explosão.
Não correu logo de cara, apesar dos esbarrões e de ser empurrada para o lado. Permaneceu enraizada onde estava no momento da explosão, estudando as estátuas e os escombros que elas produziram. Ela parecia preocupada com a possibilidade de alguém na multidão ter sido ferido pelos destroços. Mas como eu já tinha observado, não parecia haver feridos. E, se houvesse, seria por causa da debandada.
Satisfeita, Lissa se virou e começou a ir embora com os outros. (Bem, ela caminhava; eles corriam). Ela havia percorrido uma pequena distância quando avistou um enorme grupo de guardiões com uma cara séria se apressando em direção à igreja. Alguns pararam para ajudar os que escapavam da destruição, mas grande parte estava a caminho do local da explosão para ver o que havia acontecido.
Lissa parou de novo, fazendo com que o cara que vinha atrás dela batesse nas suas costas, mas ela mal sentiu o impacto. Observou os guardiões com atenção, registrando quantos eram, e então prosseguiu. Seus pensamentos escondidos começavam a se revelar. Finalmente, passei a enxergar partes do plano que ela andava escondendo de mim. Lissa estava satisfeita. Nervosa, também. De modo geral, porém, se sentia...
Um tumulto na cadeia me fez voltar de repente para minha mente. A tranquilidade costumeira da área de detenção havia sido desfeita e agora dava lugar a grunhidos e exclamações. Com um pulo, me levantei de onde estava sentada e pressionei o corpo contra as grades, usando toda minha força para ver o que estava acontecendo. Aquele prédio também estaria prestes a explodir? Minha cela dava apenas para uma parede da entrada, sem vista para o resto do corredor nem para a porta. Vi, porém, os guardiões que costumavam ficar na extremidade mais distante do corredor passarem apressados por mim, dirigindo-se a uma discussão acalorada que estava acontecendo.
Eu não sabia como aquilo me afetaria, e me preparei para qualquer coisa, amigo ou inimigo. Até onde sabia, poderia ser alguma facção política atacando a Corte para protestar contra o governo dos Moroi. Espiando ao redor da cela, xinguei em silêncio, desejando algo com que pudesse me defender. O mais próximo disso que eu tinha era o livro de Abe, o que não era nada bom. Se ele fosse o cara esperto que fingia ser, teria escondido uma lima ali dentro. Ou me arranjado algo maior, como Guerra e paz.
A discussão se esvaiu e ouvi passos apressados na minha direção. Cerrando os punhos, me afastei um pouco, pronta para me defender de qualquer um. “Qualquer um” acabou sendo Eddie Castile. E Mikhail Tanner.
Rostos amigos não eram o que eu esperava. Eddie era um amigo de longa data, do tempo da São Vladimir, outro jovem guardião como eu e alguém que ficou ao meu lado em muitas desventuras, inclusive quando fui libertar Victor Dashkov da prisão. Mikhail era mais velho que nós, tinha uns 25 anos, e nos ajudou a recuperar Dimitri na esperança de que Sonya Karp – uma mulher que Mikhail amara e que se tomara Strigoi – também fosse salva. Olhei para um e para outro.
— O que está acontecendo? — perguntei, intrigada.
— É bom rever você também — disse Eddie.
Ele estava suado e tenso devido ao fervor da luta, e alguns hematomas no rosto mostravam que ele havia se encontrado com o punho de alguém naquela noite. Na mão, segurava uma arma que eu já tinha visto no arsenal dos guardiões: uma espécie de bastão usado para incapacitar pessoas sem matá-las. Mikhail, porém, possuía algo muito mais valioso: o cartão e a chave para abrir minha cela.
Meus amigos protagonizavam uma invasão à prisão. Inacreditável. Loucura costumava ser minha especialidade.
— Vocês dois... — Franzi a testa.
A ideia de fugir me encheu de alegria, mas a logística me fez ponderar. Era claro que eles tinham sido responsáveis pela luta com meus guardas que eu acabava de ouvir. Chegar até ali também não era fácil.
— Vocês dois simplesmente enfrentaram todos os guardiões deste prédio?
Mikhail terminou de destrancar a porta e não perdi tempo: saí logo dali. Depois de passar dias me sentindo tão oprimida e sufocada, aquilo era como pisar na beira de uma montanha, com vento e espaço ao meu redor.
— Rose, não tem nenhum guardião neste prédio. Bem, talvez um. E esses caras — Eddie gesticulou em direção à discussão de antes, onde presumi que meus guardas estivessem caídos, desacordados. Por certo, meus amigos não haviam matado ninguém.
— Os outros guardiões estão todos investigando a explosão — presumi. As peças começaram a se encaixar... inclusive a falta de surpresa de Lissa quanto ao tumulto. — Ah, não. Vocês fizeram Christian explodir um antigo artefato dos Moroi.
— Claro que não — disse Eddie. Ele parecia chocado por eu ter sugerido tamanha atrocidade. — Outros usuários de fogo poderiam notar se ele tivesse feito isso.
— Bem, já é alguma coisa — disse eu.
Deveria ter confiado mais na sanidade deles. Ou talvez não.
— Usamos C4 — explicou Mikhail.
— E onde é que vocês...
Minha língua travou quando vi quem estava no fim do corredor. Dimitri.
Não saber como ele andava durante minha prisão havia sido frustrante. O que Christian e Tasha disseram me deixou ainda mais instigada. Bem, ali se encontrava a resposta. Dimitri estava parado perto da entrada do corredor em toda sua glória de dois metros de altura, tão majestoso e intimidador quanto qualquer deus. Seus olhos castanhos e penetrantes avaliaram tudo num instante, e seu corpo forte e esbelto estava tenso, pronto para enfrentar qualquer ameaça. Dimitri tinha um olhar tão concentrado, tão repleto de paixão que não pude acreditar como alguém pode ter achado um dia que ele era um Strigoi. Vida e energia ardiam dentro dele. Ao olhar para Dimitri agora, lembrei-me mais uma vez de como ele me defendeu quando fui presa. Estava com aquela mesma expressão. De fato, era a mesma expressão que vi inúmeras vezes. Era aquela pessoa que os outros temiam e admiravam. Era aquela pessoa que eu tinha amado.
— Você também está aqui? — Tentei lembrar a mim mesma que minha complicada história de amor não era a coisa mais importante no mundo. — Você não estava em prisão domiciliar?
— Ele fugiu — disse Eddie, astuto.
Entendi o verdadeiro significado: Mikhail e ele tinham ajudado Dimitri a fugir.
— É o que esperariam que um cara violento que ainda deve ser um Strigoi fizesse, não é?
— Também esperariam que ele viesse libertar você — acrescentou Mikhail, entrando na brincadeira. — Ainda mais se levarmos em conta como ele lutou por você na semana passada. Na verdade, todo mundo vai pensar que ele libertou você sozinho. E não com nossa ajuda.
Dimitri não disse nada. Seus olhos, apesar de ainda atentos, observando nossos arredores, também me avaliavam. Ele se certificava de que eu estava bem, sem ferimentos. Parecia aliviado ao ver que sim.
— Venha — disse Dimitri, por fim. — Não temos muito tempo.
O comentário não expressava a gravidade da situação, mas algo me incomodava no plano “brilhante” dos meus amigos.
— Não tem como pensarem que ele fez isso sozinho! — exclamei, percebendo o que Mikhail queria dizer. Os dois armaram para que Dimitri fosse o responsável por minha fuga. Apontei para os guardas desacordados aos nossos pés. — Eles viram vocês.
— Na verdade, não — disse uma nova voz. — Não depois de um pouco de amnésia induzida por espírito. Quando acordarem, a única pessoa que lembrarão ter visto é aquele russo desequilibrado. Sem querer ofender.
— Não me ofendeu — disse Dimitri enquanto Adrian passava pela entrada.
Encarei os dois, tentando não deixar meu queixo cair. Ali estavam eles, juntos, os dois homens da minha vida. Adrian mal parecia ser capaz de partir para um embate físico, mas se encontrava tão alerta e sério quanto os outros lutadores. Seus olhos adoráveis estavam claros e repletos da astúcia que eu sabia que podiam possuir quando ele tentava de verdade. Foi quando me dei conta de algo: ele não exibia nenhum sinal de embriaguez. Será que o que eu tinha visto no outro dia era um truque? Ou ele teria se forçado a assumir o controle? De um jeito ou de outro, senti um grande sorriso aparecer aos poucos no meu rosto.
— Lissa mentiu para sua mãe mais cedo — contei. — Disse que você estava desmaiado e bêbado num lugar qualquer.
Ele retribuiu com um de seus sorrisos cínicos.
— E, bem, isso teria sido a coisa mais inteligente e mais prazerosa... a se fazer agora. E tomara que todos pensem que é isso mesmo que estou fazendo.
— Temos que ir — disse Dimitri, ficando agitado.
Viramos na direção dele. Nossas piadas desapareceram. Aquela postura que eu havia notado em Dimitri, aquela que dizia que ele era capaz de qualquer coisa e sempre nos levaria à vitória fazia com que os outros quisessem segui-lo de maneira incondicional. As expressões de Mikhail e Eddie – gradualmente mais sérias – mostravam que era exatamente assim que os dois se sentiam. Aquilo me parecia natural também. Até mesmo Adrian dava a impressão de confiar em Dimitri e, naquele momento, eu o admirei por deixar qualquer ciúme de lado – e também por se arriscar daquele jeito. Ainda mais que Adrian havia deixado claro em mais de uma ocasião que não queria se envolver em qualquer aventura perigosa nem usar o espírito escondido. Em Las Vegas, por exemplo, ele apenas nos acompanhou como um observador. É claro que também passou a maior parte do tempo bêbado, mas isso não deve ter feito a menor diferença. Dei alguns passos para a frente, porém, de repente, Adrian ergueu uma das mãos para me deter.
— Espere... Antes de ir com a gente, você precisa saber de uma coisa. — Dimitri começou a protestar, com os olhos brilhando de impaciência. — Ela precisa saber — argumentou Adrian, encarando Dimitri com firmeza. — Rose, se você fugir... estará meio que confirmando sua culpa. Será uma fugitiva. Se os guardiões encontrarem você, não precisarão de um julgamento nem de uma sentença para matá-la logo que a virem.
Quatro pares de olhos se voltaram para mim enquanto eu assimilava o significado pleno de tudo aquilo. Se eu fugisse dali agora e fosse pega, estaria morta, com certeza. Se ficasse, tinha uma chance mínima de, no pouco tempo que faltava para o julgamento, encontrarmos uma prova que me salvasse. Não era impossível. No entanto, se nada aparecesse, eu também estaria morta com toda certeza. As duas opções eram uma aposta. As duas representavam uma grande possibilidade de eu não sobreviver.
Adrian parecia estar tão em conflito quanto eu. Nós dois sabíamos que eu não tinha nenhuma boa escolha. Ele só estava preocupado e queria que eu soubesse o risco que eu estava correndo. Dimitri, porém... Para ele, não havia discussão. Dava para ver isso estampado no seu rosto. Ele era sempre a favor de cumprir as regras e fazer a coisa certa. Mas como, nesse caso? Como, diante de chances tão ruins? Era melhor correr o risco de viver como uma fugitiva e, se a morte viesse, encará-la lutando.
Minha morte não será anotada a lápis na agenda de alguém.
— Vamos — disse eu. Corremos para fora do prédio, ansiosos para dar andamento ao plano. Não consegui evitar e comentei com Adrian: — Você só pode estar usando muito espírito para provocar todas essas ilusões nos guardas.
— Estou, sim — concordou ele. — E, na verdade, não tenho o poder de fazer isso por muito tempo. Lissa deve ser capaz de fazer uma dúzia de guardiões pensarem que viram fantasmas. Já eu mal posso fazer alguns se esquecerem de Eddie e Mikhail. É por isso que precisávamos de alguém de quem se lembrassem para chamar a atenção, e Dimitri é o bode expiatório ideal.
— Bem, obrigada.
Apertei sua mão com delicadeza. Enquanto um calor fluía entre nós, não me dei ao trabalho de dizer a ele que eu ainda estava longe de ser livre. Isso desvalorizada seu heroísmo. Tínhamos muitos obstáculos pela frente, mas, ainda assim, eu apreciava o fato de ele colaborar daquela maneira e respeitar minha decisão de prosseguir com o plano de fuga.
Adrian me olhou de soslaio.
— É, bem, devo ser louco, não devo? — Um lampejo de afeto brilhou nos seus olhos. — E não existe muita coisa que eu não faria por você. Quanto mais idiota, melhor.
Chegamos ao andar principal e vi que Eddie tinha razão quanto à segurança feita pelos guardiões. As salas e os corredores estavam quase desertos. Sem pestanejar, corremos lá para fora, e o ar fresco pareceu renovar minha energia.
— E agora? — perguntei a meus resgatadores.
— Agora levamos você para o carro de fuga — respondeu Eddie.
As garagens não ficavam longe dali, mas também não ficavam perto.
— É muita área aberta para percorrermos — exclamei.
Não mencionei o problema óbvio: eu seria morta se fosse vista.
— Estou usando o espírito para manter todos nós com uma aparência vaga e indeterminada — disse Adrian. Mais um teste para sua magia. Ele não aguentaria muito mais. — Não vão nos reconhecer, a menos que parem e olhem diretamente para nós.
— O que é provável que não façam — acrescentou Mikhail. — Se é que alguém irá nos notar. Todo mundo está preocupado demais consigo mesmo para prestar atenção nos outros em meio a todo esse caos.
Ao olhar ao redor, vi que ele tinha razão. A cadeia ficava longe da igreja, mas, àquela altura, os que estavam perto da explosão já se encontravam à caminho daquela parte da Corte. Alguns corriam para dentro de suas casas. Alguns procuravam os guardiões, na esperança de serem protegidos. E outros... Outros seguiam na mesma direção que nós, para as garagens.
— As pessoas estão assustadas o bastante para realmente tentarem deixar a Corte — constatei. Nosso grupo andava o mais rápido possível com Adrian, que não tinha um desempenho como o dos dampiros. — As garagens vão estar lotadas.
Tanto os veículos oficiais da Corte quanto os dos visitantes estacionavam na mesma área.
— Isso pode nos ajudar — disse Mikhail. — Mais caos.
Com tantas distrações na minha realidade, não consegui penetrar por completo na de Lissa. Ao tocar o laço com leveza, encontrei minha amiga a salvo, lá no palácio.
— O que Lissa está fazendo enquanto tudo isso acontece? — perguntei.
Acredite, fiquei feliz por ela não estar envolvida em toda essa loucura de me libertar da cadeia. No entanto, como Adrian havia comentado, a habilidade dela com espírito poderia ter ido muito mais longe do que a dele. E agora, revendo tudo, era óbvio que ela sabia daquele plano. Esse era seu segredo.
— Lissa precisa permanecer inocente. Não pode ser ligada a nenhuma parte da fuga nem à explosão — respondeu Dimitri, com os olhos fixos na sua meta à frente. Seu tom de voz era firme. Ele ainda a considerava sua salvadora. — Ela tem que se manter à vista, em meio aos outros membros da realeza. E Christian também — ele quase sorriu. Quase. — Esses dois com certeza seriam os meus primeiros suspeitos se alguma coisa explodisse.
— Mas os guardiões não vão suspeitar deles quando se derem conta de que a explosão não foi provocada por magia — refleti. As palavras que Mikhail havia dito mais cedo voltaram a minha mente. — Ei, onde foi que vocês conseguiram C4? Explosivos de uso exclusivo dos militares é um exagero, mesmo se tratando de vocês.
Ninguém me respondeu porque três guardiões surgiram de repente no nosso caminho. Ao que parecia, nem todos estavam na igreja. Dimitri e eu passamos à frente do nosso grupo, andando como se fôssemos um, como sempre fizemos juntos nas batalhas. Adrian tinha dito que a ilusão com que ele havia encoberto nosso grupo não permaneceria se alguém nos encarasse diretamente. Eu queria garantir que Dimitri e eu fôssemos a primeira linha de contato com aqueles guardiões, na esperança de eles não reconhecerem os que vinham atrás de nós. Parti para a luta sem hesitar, com os instintos de defesa vindo à tona. No entanto, naqueles milésimos de segundo, me dei conta do que de fato estava fazendo.
Já havia enfrentado guardiões antes e sempre me sentia culpada por isso. Lutei contra os da prisão Tarasov e também contra a guarda da rainha, ao ser detida. Na verdade, porém, não conhecia nenhum deles. O simples fato de pensar que eram meus colegas ali já era ruim o bastante... Mas e agora? Agora eu estava diante de um dos maiores desafios da minha vida, por menor que ele parecesse. Afinal, derrotar três guardiões era fácil para mim e para Dimitri. O problema era: eu conhecia aqueles guardiões. Tinha me encontrado por acaso com dois deles pouco tempo depois da formatura. Eles trabalhavam na Corte e sempre foram legais comigo.
A terceira guardiã não era apenas uma conhecida – era uma amiga minha. Meredith, uma das poucas meninas da minha turma na São Vladimir. Vi o desassossego brilhar nos seus olhos, um sentimento que espelhava o meu. Aquilo parecia errado para ela também. No entanto, Meredith era uma guardiã agora e, como eu, havia sido treinada para cumprir seu dever pela vida toda. Ela acreditava que eu era uma criminosa. Podia ver que eu estava livre e pronta para atacar. O regulamento mandava Meredith me deter e, para ser sincera, eu não esperava que ela fizesse diferente. É o que eu teria feito se estivesse no lugar dela. Era vida ou morte.
Dimitri partiu para cima dos outros dois caras, tão ágil e determinado quanto sempre. Meredith e eu nos enfrentamos. Primeiro, ela tentou me derrubar usando o próprio peso, provavelmente na esperança de me prender no chão até os reforços chegarem e ajudarem a me prender. Só que eu era mais forte. Ela devia saber disso. Quantas vezes praticamos boxe juntas na educação física da escola? Eu quase sempre vencia. E aquilo não era brincadeira, não era treinamento. Reagi ao ataque, atingindo a lateral de sua mandíbula e torcendo, desesperada, para não ter quebrado nada. Ela continuou se mexendo, apesar da dor, porém – mais uma vez – levei vantagem. Agarrei seus ombros e a empurrei para baixo. Sua cabeça bateu com força no chão, só que ela permaneceu consciente. Eu não sabia se ficava feliz ou não. Ainda segurando-a com força, dei um mata-leão nela e esperei até seus olhos fecharem. Soltei-a assim que tive certeza de que ela havia apagado, com o coração apertado.
Olhei ao redor e vi que Dimitri também havia derrotado seus oponentes. Nosso grupo seguiu em frente, como se nada tivesse acontecido, e me virei para Eddie, sabendo que havia pesar no meu rosto. Ele parecia sofrer também, só que procurou me apoiar enquanto nos apressávamos.
— Você fez o que precisava fazer — disse ele. — Ela vai ficar bem. Destruída, mas bem.
— Bati nela com força.
— Os médicos podem cuidar das concussões. Nossa, lembra quantas já tivemos nos treinos?
Torci para que ele tivesse razão. A linha entre o certo e o errado começava a se embaralhar. Uma coisa boa, como supus, foi que Meredith ficou tão ocupada, com os olhos voltados para mim, que não deve ter notado Eddie nem os outros. Eles haviam recuado da luta, felizmente mantendo-se sob o véu de espírito de Adrian enquanto Dimitri e eu atraíamos a atenção para nós.
Por fim, chegamos às garagens, que de fato estavam mais tumultuadas do que de costume. Alguns Moroi já tinham partido. Vimos uma mulher da realeza histérica porque seu motorista havia ficado com as chaves do carro e ela não sabia onde ele havia se metido. Gritava para quem passasse, tentando arranjar alguém que pudesse fazer uma ligação direta no carro para ela.
Sem hesitar, Dimitri foi nos levando em frente, de propósito. Ele sabia exatamente para onde íamos. Houve muito planejamento, como percebi. E grande parte deve ter acontecido no dia anterior. Por que Lissa tinha escondido isso de mim? Não teria sido melhor se eu já soubesse do plano?
Tratamos de desviar dos outros a passos apressados, seguindo em direção à garagem mais distante. Ali, bem do lado de fora e parecendo pronto para partir, havia um Honda Civic cinza opaco. Um homem estava de pé perto do carro, de braços cruzados enquanto examinava o para-brisa. Ao ouvir que nos aproximávamos, se virou.
— Abe! — exclamei.
Meu pai ilustre se virou e deu um daqueles sorrisos charmosos capazes de atrair os desavisados para a desgraça.
— O que você está fazendo aqui? — perguntou Dimitri. — Você vai entrar para a lista de suspeitos também! Devia ter ficado com os outros.
Abe deu de ombros. Ele parecia não dar a mínima para a raiva de Dimitri. Eu não iria querer aquela fúria direcionada para mim.
— Vasilisa irá cuidar para que algumas pessoas no palácio jurem que me viram no momento da explosão — ele voltou seus olhos escuros para mim. — Além do mais, eu não poderia ir embora sem me despedir, não é?
Balancei a cabeça, exasperada.
— Isso fazia parte dos seus planos como meu advogado? Não me lembro de fugas explosivas fazerem parte do curso de direito.
— Bem, tenho certeza de que não fez parte do curso de direito de Damon Tarus — o sorriso de Abe nunca vacilava. — Eu falei, Rose. Você nunca irá enfrentar uma execução... nem mesmo um julgamento, se eu puder evitar — Ele fez uma pausa. — O que, é claro, eu posso.
Hesitei, olhando em direção ao carro. Dimitri estava ao lado dele com uma penca de chaves, impaciente. As palavras de Adrian ecoaram na minha cabeça.
— Se eu fugir, vou assumir minha culpa.
— Já acham que você é culpada — disse Abe. — Você definhar naquela cela não vai mudar nada. Isso só nos garante mais tempo para fazer o que precisamos sem a sua execução nos assombrando.
— E o que vocês vão fazer, exatamente?
— Provar que você é inocente — respondeu Adrian. — Ou, bem, que você não matou minha tia. Já faz um tempo que sei que você não é tão inocente.
— Vocês vão destruir as provas? — perguntei, ignorando a brincadeira.
— Não — respondeu Eddie. — Temos que descobrir quem, na verdade, a matou.
— Vocês não deviam se envolver nisso, agora que estou livre. É problema meu. Não foi por isso que vocês me libertaram?
— É um problema que você não pode resolver enquanto estiver na Corte — observou Abe. — Precisamos de você a salvo, longe daqui.
— É, mas eu...
— Estamos perdendo tempo com essa discussão — disse Dimitri.
Seu olhar pairou sobre as outras garagens. As multidões ainda estavam caóticas, ocupadas demais com o próprio medo para nos notar. Isso não afetava a preocupação de Dimitri. Ele me entregou uma estaca de prata e não perguntei o porquê. Era uma arma, algo que eu não podia recusar.
— Sei que tudo parece desorganizado, mas você ficará impressionada com a rapidez com que os guardiões conseguem restabelecer a ordem. E quando isso acontecer, vão cercar este lugar.
— Eles não precisarão fazer isso — disse eu, devagar, com a mente girando. — Já vamos ter problemas para sair da Corte. Seremos parados... Isso se conseguirmos chegar ao portão. Haverá quilômetros de filas de carros!
— Ah, bem — disse Abe, estudando as pontas dos dedos. — Eu soube de uma fonte segura que um novo “portão” será aberto logo depois do lado esquerdo do muro.
Foi então que me dei conta da verdade.
— Meu Deus. É você quem anda distribuindo C4.
— Você faz parecer tão fácil — retrucou ele, franzindo a testa. — É difícil arranjar isso.
A paciência de Dimitri chegava ao fim.
— Ei, todos vocês: Rose precisa ir agora. Ela corre perigo. Vou arrastá-la para fora daqui se for preciso.
— Você não tem que ir comigo — disparei de volta, me sentindo um pouco ofendida pela presunção.
Emergiram na minha mente algumas lembranças das nossas discussões recentes, de Dimitri dizendo que não era capaz de me amar e que sequer queria ser meu amigo.
— Vou cuidar de mim mesma. Ninguém mais precisa se meter em encrenca. Me dê as chaves.
Em vez de fazer isso, Dimitri me deu um daqueles olhares sentidos, mostrando que achava que eu estava sendo completamente ridícula. Como se tivéssemos voltado ao tempo das aulas na Escola São Vladimir.
— Rose, não tenho como me encrencar ainda mais. Alguém tem que ser responsável por ajudar você, e eu sou a melhor escolha.
Eu não tinha tanta certeza disso. Se Tatiana tivesse de fato feito algum progresso em convencer os outros de que Dimitri não era uma ameaça, aquela fuga estragaria tudo.
— Vá — disse Eddie, me surpreendendo com um breve abraço. — Manteremos contato através de Lissa.
Então me dei conta de que não adiantava lutar contra aquele grupo. Estava mesmo na hora de partir. Abracei Mikhail também, sussurrando no seu ouvido:
— Obrigada. Muito obrigada pela ajuda. Juro que iremos encontrá-la. Vamos encontrar Sonya.
Ele me deu aquele seu sorriso triste e não respondeu.
Adrian foi o mais difícil de deixar para trás. Dava para notar que era duro para ele também, mesmo que seu sorriso parecesse descontraído. Ele não podia se sentir feliz por eu estar indo embora com Dimitri. Nosso abraço durou um pouco mais do que os outros e ele me deu um beijo doce e breve nos lábios. Quase tive vontade chorar depois de ele ter sido tão corajoso naquela noite. Queria que ele pudesse ir comigo, mas sabia que estaria mais seguro ali.
— Adrian, obrigada por...
Ele ergueu uma das mãos.
— Isso não é uma despedida, dampirinha. Vejo você nos seus sonhos.
— Se você se mantiver sóbrio o bastante.
Ele piscou.
— Por você, eu faço isso.
Um barulho alto de explosão nos interrompeu e vimos um clarão à direita. Os que estavam perto das outras garagens gritaram.
— Aí, estão vendo? — perguntou Abe, bem satisfeito consigo mesmo. — Um novo portão. Bem na hora.
Também lhe dei um abraço meio relutante e fiquei surpresa por ele não ter se afastado logo de cara. Abe sorriu para mim... com carinho.
— Ah, minha filha — disse. — Dezoito anos e já foi acusada de assassinato, de formação de quadrilha e provocou mais mortes que grande parte dos guardiões jamais verá — ele fez uma pausa. — Eu não poderia estar mais orgulhoso.
Revirei os olhos.
— Tchau, velhote. E obrigada.
Não me dei ao trabalho de perguntar sobre a questão da “quadrilha”. Abe não era idiota. Depois de eu ter lhe perguntado sobre uma prisão que mais tarde havia sido invadida, ele deve ter imaginado quem estava por trás da fuga de Victor Dashkov. E então, ali estávamos Dimitri e eu no carro, acelerando em direção ao “novo portão” de Abe. Lamentei não ter podido me despedir de Lissa. Na verdade, com o laço, nunca nos separávamos, mas ele não podia substituir a comunicação cara a cara. Mesmo assim, era reconfortante saber que ela estaria a salvo e livre de qualquer envolvimento com a minha fuga. Era o que eu esperava.
Como sempre, Dimitri dirigiu, o que eu ainda achava totalmente injusto. Quando eu era sua aluna tudo bem, mas agora? Será que ele nunca abriria mão daquele volante? No entanto, aquela não parecia ser a hora de discutir isso – ainda mais que eu não planejava que passássemos muito mais tempo juntos. Algumas pessoas tinham saído para ver onde o muro havia explodido, mas, até então, nenhum oficial havia aparecido. Dimitri acelerou, atravessando a abertura; foi tão impressionante quanto Eddie quando passou pelo portão da prisão Tarasov, só que o Civic não se saiu tão bem no terreno com mato e buracos quanto o utilitário no Alasca. O problema de se criar a própria saída é que ela não vinha com uma estrada de verdade. Nem mesmo Abe conseguia fazer isso.
— Por que nosso carro de fuga é um Civic? — perguntei. — Ele não é muito bom para fazer off-road.
Dimitri não olhou para mim e continuou pilotando sobre o terreno acidentado em direção a uma área melhor para se dirigir.
— Porque o Civic é um dos carros mais comuns e não chama a atenção. E este deve ser o único off-road que vamos fazer. Quando chegarmos a uma rodovia, vamos nos distanciar o máximo que pudermos da Corte... antes de abandonar o carro, é claro.
— Abandonar... — Balancei a cabeça, deixando aquilo para lá. Chegamos a uma estrada de terra que parecia a superfície mais plana do planeta depois daquele começo cheio de solavancos. — Escute, agora que já saímos de lá, quero que saiba que estou falando sério: você não precisa vir comigo. Fico grata por você ter ajudado na minha fuga. De verdade. Mas andar comigo não será nada bom para você. Eu serei mais visada do que você. Se você fugir, pode viver em algum lugar perto dos humanos e não ser tratado como uma cobaia de laboratório. Talvez até seja capaz de voltar às escondidas para a Corte. Tasha lutaria por você.
Dimitri passou um bom tempo sem responder. Aquilo me enlouqueceu. Eu não era do tipo que lidava bem com o silêncio, que me fazia querer tagarelar para preencher o vazio. Além disso, quanto mais tempo eu passava sentada ali, mais me dava conta de que estava sozinha com Dimitri. Estava real e verdadeiramente sozinha pela primeira vez desde que ele havia voltado a ser um dampiro. Me sentia uma boba, mas apesar dos perigos que ainda corríamos... Bem, eu ainda ficava mexida por causa dele. Sua presença era algo tão intenso... Até quando ele me irritava, eu o achava atraente. Talvez a adrenalina que percorria meu corpo estivesse confundindo meu cérebro.
O que quer que fosse, o que me consumia não era apenas sua aparência – embora ela fosse por certo desconcertante. O cabelo, o rosto, toda aquela proximidade, seu cheiro... Eu sentia tudo aquilo e isso fazia meu sangue arder. O Dimitri interior, porém, o Dimitri que tinha acabado de liderar um pequeno exército numa invasão à cadeia, me cativava tanto quanto o outro.
Levei um instante para perceber por que aquilo era tão intenso: eu via o velho Dimitri de novo, o Dimitri que eu temia ter desaparecido para sempre. Ele não tinha desaparecido. Estava de volta.
Depois de muito tempo, Dimitri enfim respondeu:
— Não vou deixar você. Nenhum desses argumentos que seguem a lógica da Rose vai adiantar. E se tentar fugir de mim, vou achá-la.
Não duvidei de que ele fosse capaz disso, o que só deixava a situação mais confusa.
— Mas por quê? Não quero você comigo.
É, eu ainda sentia uma atração por Dimitri, só que isso não mudava o fato de ele ter me magoado ao terminar tudo entre nós. Ele me rejeitou, e eu precisava endurecer meu coração, ainda mais se quisesse seguir em frente com Adrian. Limpar meu nome e levar uma vida normal parecia muito distante agora, mas, se acontecesse, eu queria ser capaz de voltar para Adrian de coração aberto.
— Não importa o que você quer — disse ele. — Nem o que eu quero. Lissa me pediu para proteger você.
— Ei, não preciso que ninguém...
— E... — continuou ele — era sério o que eu disse a ela. Jurei servi-la e ajudá-la pelo resto da minha vida. Farei qualquer coisa que ela pedir. Se ela quer que eu seja seu guarda-costas, é o que vou ser — ele me lançou um olhar assertivo. — Não tem como você se livrar de mim tão cedo.

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